Teoria do Adimplemento Substancial e o Direito Brasileiro: aplicações e implicações da utilização do instituto na prática.
Por Benjamim Pinheiro
Publicado em 21/07/2020 - 09:52

A teoria do adimplemento substancial foi construída no direito inglês (substantial performance), em meados do século XVIII, e traduz-se na criação de um entendimento que tem como objetivo preservar a eficácia e continuidade de uma relação contratual, ainda que um dos contratantes deixe de cumprir com o seu dever.

A aplicação da teoria do adimplemento substancial normalmente ocorre em relação aos contratos onde há o comprometimento de uma das partes em relação ao pagamento de prestação pecuniária em favor da outra parte quando da aquisição de determinado bem. Por exemplo, num contrato de financiamento de imóvel com pacto de alienação fiduciária.

Na prática, a aplicação do adimplemento substancial resulta, por exemplo, em afastar a possibilidade de busca e apreensão da coisa na alienação fiduciária em garantia de bens imóveis, quando o devedor de boa-fé que realizava o pagamento de todas as prestações relativas à compra do imóvel financiado, deixa de continuar pagando em razão de perda ou decréscimo de sua renda.

Ou seja, trata-se de certa forma, de uma restrição ao credor em rescindir o contrato ou requerer a busca e apreensão do bem objeto contratual dado em garantia do mesmo, não significando, todavia, que as parcelas não pagas serão dadas como prejuízo ao credor, já que este poderá utilizar de outros meios legais à cobrança da dívida remanescente.

Em outras palavras, o adimplemento substancial, analisado sob a ótica dos princípios contratuais contemporâneos, em especial, o da função social do contrato e o da boa-fé objetiva, resulta na não admissão do direito de resolução contratual, permitindo-se tão somente o pedido de indenização e/ou adimplemento, mas visando sempre à manutenção da avença.

No Brasil, não há previsão expressa em lei nesse sentido, ou seja, os critérios de aplicação da teoria do adimplemento substancial devem levar em conta a equidade diante da situação fático-jurídica, com objetivo a se alcançar soluções razoáveis e sensatas.

Nesse sentido, o artigo 475, do Código Civil, deve ser interpretado respeitando-se os princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato:

Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.

Conforme o Enunciado n. 361, aprovado na IV Jornada de Direito Civil: “O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475”.

O Superior Tribunal de Justiça, em julgamento de Recurso Especial nº 272739/MG, entendeu que:

“O cumprimento do contrato de financiamento, com a falta apenas da última prestação, não autoriza o credor a lançar mão da ação de busca e apreensão, em lugar da cobrança da parcela faltante. O adimplemento substancial do contrato pelo devedor não autoriza o credor a propositura de ação para a extinção do contrato, salvo se demonstrada a perda do interesse na continuidade da execução, que não é o caso. Na espécie, ainda houve a consignação judicial do valor da última parcela. Não atende a exigência da boa-fé objetiva a atitude do credor que desconhece esses fatos e promove a busca e apreensão, com pedido liminar de reintegração de posse (STJ, RESp. 272739/MG, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 02/04/2001).”

Muito embora seja a decisão acima, datada do ano de 2001, é importante tecer alguns comentários.

No caso, o STJ entendeu necessária a relativização da exigência do exato e estrito cumprimento do contrato, aplicando a teoria do adimplemento substancial, a fim de impedir o exercício abusivo do direito pelo credor.

É importante levar em consideração todo o contexto da decisão acima destacada. Isso porque o simples inadimplemento de poucas parcelas não significa que o devedor/comprador sempre terá a garantia de ver mantida sua avença à custa do princípio da boa-fé e da função social do contrato, tendo em vista que tal comportamento representaria um incentivo ao inadimplemento das últimas parcelas contratuais, considerando que o devedor saberia que não perderia o bem e que o credor teria que se contentar em buscar o crédito faltante por outras vias judiciais menos eficazes.

Em análise a mesma decisão, tem-se que o STJ entendeu pela aplicação do adimplemento substancial, tendo em vista, dentre outros fundamentos, restar apenas 01 parcela para dar quitação ao contrato de financiamento, e que, ademais, houvera a consignação judicial do valor da última parcela, ou seja, o devedor realizou o pagamento da última parcela mediante consignação judicial depois de promovida ação de busca e apreensão em seu desfavor.

Por outro lado, a título de exemplo: João realizou contrato de financiamento de veículo no valor de R$ 40.000,00 com determinada instituição financeira, ficando acordado que o pagamento se daria em 48 parcelas mensais e sucessivas. Aconteceu que, depois de ter realizado o pagamento da parcela n.º 44, João enfrentou dificuldades financeiras que o impossibilitou de honrar o pagamento das 04 parcelas restantes. Neste contexto, a instituição financeira requereu a busca e apreensão do veículo.

Nesse caso hipotético, tem-se que João efetuou o pagamento de 91% das parcelas oriundas do contrato de financiamento do veículo. Todavia, nesse caso, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento de Recurso Especial nº 1.622.555/MG, entendeu que não se aplica a teoria do adimplemento substancial quando se trata de contrato de financiamento de veículo com alienação fiduciária em garantia regido pelo Decreto-Lei 911/69.

Nos termos da Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o credor, ao ingressar com o pedido de busca e apreensão não pretende a extinção da relação contratual, mas sim compelir o devedor fiduciante a dar cumprimento às obrigações faltantes.

O Decreto-Lei 911/69, que altera a redação do art. 66, da Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965, dispõe em seu artigo 1º, que “a alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada...”

Referida decisão do STJ, portanto, é no sentido de que a teoria do adimplemento substancial não se aplica aos contratos de financiamento de coisa móvel, nada dizendo respeito ao contrato de financiamento de bem imóvel, até porque o Decreto-Lei 911/69 aplica-se apenas aos bens móveis. Não obstante, há quem interprete, com base na referida decisão, que a teoria do adimplemento substancial não se aplica tanto para bens móveis quanto imóveis, quando se trata de financiamento com pacto de alienação fiduciária.

Entretanto, quando se trata de financiamento de bem imóvel em que foram pagas, por exemplo, 44 parcelas de 48, é correto afirmar que pela aplicação da teoria do adimplemento substancial, restará a possibilidade da instituição financeira cobrar as parcelas faltantes, abstendo-se de consolidar a propriedade do imóvel em nome do fiduciário e levá-lo à hasta pública.

A propósito, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo reconheceu o adimplemento substancial de obrigação contratual e impediu que uma construtora tomasse de volta imóvel que estava com 86% do financiamento quitado:

“A teoria do adimplemento substancial não implica em afronta aos princípios da autonomia privada, função social e boa-fé objetiva, já que o credor ainda tem o direito de  perseguir o saldo devedor remanescente pelos demais meios legais cabíveis de satisfação do crédito, de modo que, estando o percentual pago pelo mutuário próximo ao máximo, ou seja, superior a 86%, o que  é incontroverso nos autos, deve ser autorizada a aplicação da almejada teoria.”

Diante de todo conteúdo apresentado, percebe-se que a teoria do adimplemento substancial deve ser aplicada conforme as peculiaridades de cada caso, como instrumento de equidade diante da situação fático-jurídica subjacente, permitindo soluções razoáveis e sensatas.

Em que pese o cumprimento de praticamente todo o obrigacional não significar o direito à manutenção da avença, a análise do adimplemento substancial não deve ser meramente quantitativa, levando-se em conta somente o cálculo matemático do montante do cumprimento do negócio. Deve-se considerar também o aspecto qualitativo, afastando-se a sua incidência, por exemplo, em situações de moras sucessivas, purgadas reiteradamente pelo devedor, em claro abuso de direito.

Por fim, é de grande valia a aplicação da teoria do adimplemento substancial com o propósito de preservar a autonomia privada, bem como a conservação do negócio jurídico.


REFERÊNCIAS:

TARTUCE, Flávio. NEVES, Daniel A. A. Manual de Direito do Consumidor. 6ª ed. São Paulo. Editora Método. 2017.

BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 21/07/2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial: 272739 MG 2000/0082405-4 – Distrito Federal. Relator: Ministro Ruy Rosado de Aguiar. Pesquisa de Jurisprudência. Publicação no Diário da Justiça em 02/04/2001. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/8044489/recurso-especial-resp-272739-mg-2000-0082405-4-stj>. Acesso em: 21/07/2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial: 1622555 MG 2015/0279732-8 – Distrito Federal. Relator: Ministro Marco Buzzi. Pesquisa de Jurisprudência. Publicação no Diário da Justiça em 16/07/2017. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/439904571/recurso-especial-resp-1622555-mg-2015-0279732-8/relatorio-e-voto-439904718?ref=juris-tabs>. Acesso em: 21/07/2020.

TJ/SP aplica teoria do adimplemento substancial e impede constrição de imóvel. Migalhas. 2019. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/quentes/297641/tj-sp-aplica-teoria-do-adimplemento-substancial-e-impede-constricao-de-imovel>. Acesso em: 21/07/2020.

TARTUCE, Flávio. A teoria do adimplemento substancial na doutrina e na jurisprudência. Jusbrasil, 2015. Disponível em: <https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/180182132/a-teoria-do-adimplemento-substancial-na-doutrina-e-na-jurisprudencia>. Acesso em: 21/07/2020.

O Escritório
O Escritório Bersch Advocacia foi fundado no ano de 2007 na cidade de Marechal Cândido Rondon, estado do Paraná. O Escritório Bersch Advocacia conta com profissionais especializados nas mais diversas áreas do direito, tendo como princípio o atendimento personalizado de seus clientes.
Bersch Advocacia
(45) 3254-5451
Rua Espírito Santo - 850 - Sala 02
Marechal Cândido Rondon, PR CEP 85.960-138.
Ver Localização
Tecnologia e desenvolvimento
Fale Conosco