Com fundamento no agravamento da crise sanitária no Paraná em razão da pandemia da Covid-19, em especial pela ausência de leitos no sistema público e privado de saúde, caiu como uma bomba o Decreto Estadual nº 4.942/2020, que dentre várias determinações, suspendeu a atividade de empresas que prestam serviços não-essenciais.
De imediato, uma série de irresignações foram apontadas, dentre as quais, que o Supremo Tribunal Federal teria outorgado plena autonomia para prefeitos agirem no combate a Covid-19, e que por isso o Decreto Estadual estaria usurpando a competência Municipal.
Pressão política foi promovida em face do Governo Estadual, e várias ações foram ajuizadas pelos Municípios que entendiam-se prejudicados.
Neste sentido, faz-se necessário desmistificar e compreender de fato qual foi o alcance da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 6343. De acordo com a própria decisão estabeleceu-se que Estados e Municípios, no âmbito de suas competências e em seu território, podem adotar, respectivamente, medidas de restrição à locomoção intermunicipal e local durante o estado de emergência decorrente da pandemia do novo coronavírus, sem a necessidade de autorização do Ministério da Saúde para a decretação de isolamento, quarentena e outras providências.
Segundo a decisão, a União também tem competência para a decretação das mesmas medidas, no âmbito de suas atribuições, quando houver interesse nacional.
Ademais, a Corte decidiu que a adoção de medidas restritivas relativas à locomoção e ao transporte, por qualquer dos entes federativos, deve estar embasada em recomendação técnica fundamentada de órgãos da vigilância sanitária e tem de preservar o transporte de produtos e serviços essenciais, assim definidos nos decretos da autoridade federativa competente.
Nesta senda precisamos compreender a hierarquia normativa estabelecida no ordenamento jurídico brasileiro, que é inspirado na doutrina de Hans Kelsen, jurista austríaco, que criou a teoria da hierarquia das normas jurídicas, que é um sistema de escalonamento das normas, apelidado de Pirâmide de Kelsen.
Nesta teoria, a ponta da pirâmide é composta pela Constituição Federal, a qual baliza as demais normas à baixo de sua hierarquia, vindo as Leis Complementares e posteriormente as Leis Ordinárias.
Na mesma interpretação, deve ser enquadrado o nível hierárquico entre os entes federativos, ou seja, normas jurídicas da União, devem prevalecer sobre os Estados, que devem prevalecer sobre os Municípios.
Os artigos 21, 22 e 23 da Constituição Federal estabelecem a competência legislativa da União, sendo que é no inciso II do artigo 23 que encontra-se amparada a competência concorrente, entre União, Estados e Municípios, no que tange a saúde pública, arguida na decisão da ADI 6343 do STF ora analisada.
O § 1º do artigo 25 da Constituição Federal determina que caberá aos Estados as competências legislativas que não lhes sejam vedadas pela Constituição.
E por fim, o inciso II do artigo 30 da Constituição Federal, dispõe que caberá aos Municípios legislar de forma suplementar a legislação federal e a estadual no que couber.
Aplicando o inciso II do artigo 23, o § 1º do artigo 25 e o inciso II do artigo 30 da Constituição Federal, em consonância com a teoria da hierarquia das normas jurídicas, no que corresponde o sistema de escalonamento das normas, analisar-se-á a atual conjuntura do conflito normativo entre o Decreto Estadual e os Decretos Municipais.
Como aludido, o Supremo Tribunal Federal asseverou na ADI 6343 que Estados e Municípios, no âmbito de suas competências e em seu território, podem adotar, respectivamente, medidas de contenção a Covid-19.
Notadamente, que o âmbito de suas competências aludidos na decisão, refere-se aos artigos constitucionais acima citados.
Nota-se que o Estado do Paraná ao editar o Decreto Estadual 4.942/20 e legislar sobre saúde pública, aplicando regras mais rígidas, utilizou-se de sua competência constitucional, e enquadrou-se no entendimento delimitado pelo STF na ADI 6343.
E o próprio Decreto Estadual, em seu § 1º do artigo 2º facultou aos Municípios adotarem medias mais severas caso a sua realidade local fosse mais grave.
Desta forma, o Município não tem autonomia para legislar de forma confrontante ao Decreto Estadual, pois não teria alçada legislativa constitucional de acordo com a teoria da hierarquia das normas.
Na visão do Supremo Tribunal Federal poderia ter uma única alternativa neste cenário de conflito normativo. Em decisão prolatada na Reclamações (RCLs 40130 e 40366) a Ministra Rosa Weber entendeu que o Município somente poderia fazer ajustes à determinação da norma estadual, a fim de atender necessidade local, se fosse capaz de justificar determinada opção como a mais adequada para a saúde pública, em razão do pacto federativo na repartição de competências legislativas comum administrativa e concorrente.
No caso, se houver justificativa ou comprovação para a adoção de medidas mais flexíveis, no âmbito municipal, com postura diversa do isolamento social orientado pelo Estado, o Município poderia assim fazê-lo.
Caso contrário, ausente qualquer amparo técnico e científico, a hierarquia as normas deve ser respeitada, ou seja, o Município deve acatar a normativa do Estado e cumprir as disposições elencadas.
Outrossim, torna-se translúcido que em nenhum momento o Supremo Tribunal Federal outorgou carta branca aos entes federativos para disciplinarem de forma autônoma a gestão da saúde pública.
Permanece ainda em vigor a teoria hierárquica das normas na qual deve ser respeitada a normativa do ente superior, em especial quando trata-se de saúde pública, da qual a competência é concorrente, ou seja, os entes inferiores podem apenas complementar o ponto omisso da legislação superior.
Desta forma, entende-se que o Decreto Estadual é dotado de legalidade constitucional, não sendo passível de questionamento quanto a sua legitimidade e competência, restando como alternativa aos Municípios, comprovarem cientificamente que a rigidez do Decreto não aplica-se à sua localidade, para que assim possam enquadrar-se na exceção reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal.